O Marketing, a transformação digital e o paradoxo de adiar a LGPD

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Muito já foi dito sobre o adiamento da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD. As posições favoráveis à prorrogação que já estavam evidentes no âmbito do legislativo (PL 1.179/2020), agora foram ratificadas pela Medida Provisória n. 959.

A justificativa é que a maior parte das empresas brasileiras não está pronta para trabalhar em compliance com a lei. Este argumento chama a atenção, pois a vacatio legis da LGPD já é extensa: 24 meses, ou seja, dois anos, um período mais do que suficiente para que as instituições conheçam a norma e se adequem a ela.

O uso de dados pessoais, seja pelos governos, seja pelas empresas, de fato, requer observação cuidadosa. Primeiro pela intensidade e pela profundidade características do modelo de negócios conhecido como data-driven, centrado na coleta e no tratamento dos dados pessoais dos consumidores. Segundo pela inevitável aceleração da transformação digital nas empresas por causa da pandemia. Marco Iansiti, professor de Administração de Empresas da Harvard Business School, escreveu recentemente que “estamos presenciando a mais rápida mudança organizacional da história da empresa moderna.[1]

A transformação digital abrange algumas dimensões que as organizações precisam considerar. Duas delas, porém, estão muito relacionadas ao consumidor e ao uso de seus dados pessoais: relacionamento com o cliente e automação de processos. É aqui que o marketing, como filosofia de gestão empresarial e como atividade, se insere e ficam evidentes a necessidade e a urgência da lei de proteção de dados pessoais.

Aceleração é uma das palavras que resume o status das organizações no Brasil que, por causa da pandemia, acordaram num mundo em que:

  • 32% dos consumidores fizeram compras online pela primeira vez[2].
  • O consumo da banda larga residencial aumentou, pelo menos, 30%[3].
  • Imóveis começam a ser vendidos sem visitas presenciais, com o auxílio de imagens feitas por drones, e com a assinaturas de escrituras digitais[4].
  • As buscas na internet revelam novos interesses como, por exemplo, saber qual o número de novos casos de covid-19, descobrir como obter o auxílio emergencial do governo e pesquisar quais são as “lives” do dia[5].

Há muitos exemplos de como as empresas estão se adequando a este momento. Um grande varejista do setor de alimentos viu seu e-commerce triplicar durante o mês de março[6] e promoveu uma readequação nos serviços aos clientes. Implantou um televendas exclusivo para idosos com dificuldades de navegar pelo ambiente digital.

Incrementou a parceria com uma empresa de entrega por aplicativo de modo a garantir a capilaridade e o alcance junto ao consumidor. Direcionou o orçamento de encartes de ofertas para o meio digital, e agora são disparados por e-mail marketing, devidamente segmentados de acordo com o histórico de compra do cliente.

É neste cenário de aceleração da transformação digital, impulsionada pela covid-19, que a Lei Geral de Dados Pessoais se faz extremamente necessária. O fluxo de dados aumentou[7] e as empresas têm mais acesso a informações pessoais. Em consequência, lançam mão deste conhecimento para incrementar e intensificar relacionamentos com seus consumidores. Cada vez mais os processos de marketing serão automatizados, passando pela inteligência para a extração de insights com a finalidade de atrair, engajar e vender.

A regulação é necessária para dar segurança não só ao consumidor, mas também aos gestores no desenvolvimento de estratégias de marketing que, neste momento, ganham força e presença nos ambientes digitais. Praticamente todas as atividades inseridas no contexto da automação de marketing precisarão de adaptação.

A vigência da LGPD se prestará, num primeiro momento, a consolidar e a traduzir para os gestores de marketing os conceitos básicos relacionados ao consumidor, seus direitos, hipóteses de tratamento, responsabilidades estabelecidas entre controladores e operadores, compartilhamento dos dados e boas práticas das empresas. Já os princípios, sobretudo finalidade, necessidade e transparência, devem obrigatoriamente nortear as atividades de relacionamento com o cliente.

Um dos desafios para o mercado é justamente circunscrever o tratamento de dados às finalidades específicas estabelecidas no momento da coleta. Desta forma, definir os dados necessários em função dos indicadores-chave de performance do negócio (KPIs) pode ajudar a limitar a quantidade de informação que realmente importa.

A reflexão sobre as hipóteses de tratamento é essencial para a indústria do marketing. O varejista que dispara e-mail marketing com as ofertas para clientes já cadastrados, provavelmente está trabalhando com base em consentimento, que eventualmente precisará ser revisitado. Em outra situação, a exemplo do televendas para idosos, qual seria a base legal mais adequada levando em conta a obrigatoriedade de garantir informações simples, claras e acessíveis sobre o uso de dados deste público, naturalmente mais vulnerável? As respostas estão na análise dos casos concretos e na melhor adequação à lei.

Como já foi dito aqui em artigo assinado por Fabricio da Mota Alves não é mais uma questão da lei pegar ou não, a LGPD já pegou e já mudou a atuação não só do Ministério Público, mas também de órgãos de defesa do consumidor. Especial atenção será dada aos direitos dos titulares, que estão sendo bombardeados por informações comerciais extremamente segmentadas e customizadas. Logo, se a atividade de marketing se intensifica, os direitos também precisam se fortalecer e estar aparentes e facilitados como determina a lei.

O compartilhamento de dados entre as diversas empresas, sejam fornecedoras de produtos ou prestadoras de serviços, também se intensificou. Logo, as definições firmes sobre quem é controlador e quem é operador nas diversas ações de marketing também entram na ordem do dia.

Além do foco na operação e na entrega ao cliente, crescerá a necessidade de implantação de salvaguardas, a exemplo do relatório de impacto à proteção de dados pessoais – RIPD. Tudo sob pena de colocar em xeque a reputação e a imagem da marca. Ninguém quer arriscar o custo de um vazamento de dados neste momento. De crise, já basta a pandemia.

Muito mais do que entraves, a LGPD traz segurança jurídica para consumidores e empresas. O desenvolvimento econômico, o avanço tecnológico e a inovação estão garantidos nos fundamentos da lei, conforme o art. 2, V[8]. Independentemente do argumento de que, sem a autoridade nacional de proteção de dados (ANPD), a lei será inoperante, o contexto de marketing atual, qual seja: de intensificação das atividades dirigidas ao consumidor no ambiente digital, demanda no mínimo um aculturamento dentro do novo contexto legal. A LGPD trata, em grande parte, de mudança de cultura empresarial, e quanto antes isso começar, melhor.

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[1] IANSITI, Marco; RICHARDS, Greg. Coronavirus Is Widening the Corporate Digital Divide, disponível em https://hbr.org/2020/03/coronavirus-is-widening-the-corporate-digital-divide?autocomplete=true Acesso em 25/04/2020.

[2] https://iabbrasil.com.br/wp-content/uploads/2020/04/WPPi_Covid19_Report_20200327.pdf

[3] Ana Paula Castello Branco, diretora de branding da TIM https://www.youtube.com/watch?v=ttoH9JhjWb0

[4] https://www.linkedin.com/in/florianhagenbuch/detail/recent-activity/

[5] https://trends.google.com.br/trends/trendingsearches/daily?geo=BR

[6] Silvana Balbo, diretora de marketing do Carrefour https://www.youtube.com/watch?v=qjV9CP-53wM

[7] O Brasil bateu recorde em volume de dados na internet: foram 10 terabits por segundo (Tb/s) nas noites de 18 e 19 de março. Em SP, cidade mais afetada pelo vírus, foram 8Tb/s, marca inédita. Ver mais em https://iabbrasil.com.br/wp-content/uploads/2020/04/WPPi_Covid19_Report_20200327.pdf

[8] Art. 2º, V. Lei 13.709/2018: A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: V – o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;

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